Recomendações de Feministas Africanas para a Recuperação Económica Pós-COVID-19

Preâmbulo: Um grupo de Feministas Africanas uniu-se para reconsiderar o futuro das economias políticas dos países africanos. Esta carta, dirigida aos Enviados da União Africana designados a mobilizar apoio internacional para a recuperação económica das nossas economias, contém um conjunto de recomendações e pede aos Enviados que se juntem a nós na reconsideração do desenvolvimento económico dos nossos países. Caso se identifique como Feminista Africana e concorde com as estas recomendações, gostaríamos de convidá-la a registar-se como assinante da Carta.

Dr. Ngozi Okonjo-Iweala, Dr. Donald Kaberuka, Sr. Tidjane Thiam, Sr. Trevor Manuel e Sr. Benkhalfa Abderrahmane,

Endereçamo-vos esta carta na vossa qualidade de Enviados Especiais mandatados pela União Africana à mobilizar apoio internacional para a luta contra a pandemia do novo coronavirus em África. Nós somos uma constelação de Feministas Africanas comprometidas com visões pan-Africanas de uma África liberada. Estes ideiais permitem-nos ousar em crer que existem soluções e recursos amplos para dar resposta às várias pandemias que o nosso continente enfrenta. Fazemos parte de várias comunidades, formações, sectores e disciplinas incluindo direito, movimentos feministas, filantropias, economia, direitos territoriais e agrários, saúde, produção cultural, estudos de desenvolvimento, soberania alimentar, justiça tributária, actividade ecológica, entre outros.

Cremos que o nosso continente precisa de soluções e que a pandemia do COVID-19 se apresenta como uma oportunidade para reimaginarmos as economias políticas Africanas. Este momento requer uma resposta pan-Africana que proporcione um ambiente favorável para que as actividades económicas lideradas por pessoas e movimentos – incluindo economias solidárias e cooperativas, mas não limitadas a estas – possam ser apoiadas e ter espaço para prosperar. A pandemia do COVID-19 deve ser um ponto de partida para abandonarmos os modelos ortodoxos de laissez-faire e de financialização excessiva dos estados. Esta crise é ainda uma oportunidade para combatermos a desigualdade estrutural e reestruturarmos os processos de economia política que contribuíram para este momento crítico. Enquanto Feministas Africanas, nós estivemos envolvidas de forma activa na produção de informação e fortalecimento de movimentos desde a época dos ajustes estruturais. Muitas de nós – tais como vós – testemunhamos o esvaziamento dos nossos estados resultante dos Programas de Ajustamento Estrutural. A crise financeira de 2008 foi uma ruptura grave na globalização e um lembrete contundente que os mercados descontrolados não podem ser árbitros primários da riqueza e da distribuição económica. Os nossos estados são, em toda sua imperfeição, as entidades tangíveis onde residimos, produzimos, consumimos e eventualmente seremos postos a descansar.

A crise de crédito foi enorme e abrangente, e alterou o nosso mundo de formas ainda em descoberta. Infelizmente, qualquer crise pode parecer banal ou até mesmo invisível. As pessoas adaptam-se e acabam por aceitar as mudanças trazidas pela crise. Desta vez, este não pode ser o caso. A resiliência da lógica do mercado tem se imbuído ao ponto da ortodoxia económica e as formas neoliberais de produção passarem a ser vistas não só como consequências da globalização, mas também como a ordem natural do nosso universo. O COVID-19 abalou essa visão e dá-nos a oportunidade de reformular as capacidades dos estados e as medidas drásticas geralmente usadas para impor ordem social em momentos de frágilidade. 

Iniciativas tais como a Carta Africana da Participação Popular no Desenvolvimento, o Novo Programa de Desenvolvimento da Visão Africana 2020 das Nações Unidas, a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (NEPAD), não renderam dividendos substanciais. Se a soma total de todas estas iniciativas não foi suficiente para evitar o presente momento, então precisamos reavaliar as nossas opções. Precisamos de uma reorientação mais profunda do desenvolvimento Africano, muito além do COVID-19.

Face a iniciativa de angariar apoio  financeiro em resposta aos impactos da pandemia no continente, a fraqueza das políticas dominantes e os modelos de financiamento do desenvolvimento não devem comprometer ainda mais a autonomia dos estados Africanos para dar reposta às suas obrigações perante o povo Africano. Nos últimos vinte anos, o “crescimento” Africano tem sido acompanhado de um desemprego abrangente e um agravamento das desigualdades económicas, que estão agora no pico dos seus níveis. Décadas de despesa pública reduzida resultaram em milhões de pessoas sem acesso aos serviços básicos como saúde, enquanto a crescente onda de privatizações de tais serviços (incluindo água e luz), resultante da mercantilização e sujeição dos serviços básicos às regras de mercado e às necessidades de accionistas, tem comprometido mais ainda os acessos equitativos. Ao mesmo tempo, as políticas económicas focadas na agricultura industrial para exportação têm falhado na garantia de segurança alimentar para o continente. Além disso, a falta de investimento em sistemas alimentares locais que asseguram a soberania alimentar tem tido impactos prejudiciais na biodiversidade Africana e na resiliência climática. 

As dimensões de género das políticas prevalentes ainda não são plenamente reconhecidas, incluindo a intensificação da desigualdade económica da mulher através da exploração do seu trabalho dentro e fora de casa; invisível, mal ou não remunerado, e inseguro. Enquanto o COVID-19 propaga-se pelo continente, a ausência de redes de segurança social para mulheres expostas à precariedade financeira resultante de choques económicos tem exposto as falhas de uma trajectória de desenvolvimento que prioriza a produtividade para o crescimento acima do bem-estar do povo Africano. De facto, o COVID-19 tornou evidente o que feministas sempre realçaram: que os ganhos realizados pelas economias e mercados são subsidiados pelo trabalho de cuidado e doméstico não remunerado das mulheres – um serviço essencial que nem mesmo na presente pandemia é reconhecido ou recebe respostas cabíveis em termos de políticas públicas. 

Enquanto Africanos e Africanas, temos uma responsabilidade histórica de reflectir de maneira firme e honesta sobre as repercussões de continuar no rumo dogmático ao endividamento. Solicitamos fundos enquanto o continente é um credor líquido de capital. Que possibilidades isto oferece às futuras gerações? Preocupamo-nos com as formas e fontes de recursos financeiros, bem como as condicionalidades correspondentes. Nas gerações anteriores, estas aumentaram a carga de trabalho não remunerado para as mulheres Africanas. Temos a esperança e a expectativa feminista de que os vossos planos para este continente estão alinhados com uma visão progressiva para o continente. O COVID-19 realçou as nossas fraquezas estruturais e a história evidencia que os velhos métodos não funcionam.

Apelamo-vos a garantir a criação de um processo aberto, inclusivo e transparente para definir como assumem o vosso trabalho e como interpretam o produto dos vossos esforços na mobilização de apoio. Este processo precisa ir além da consulta com ´experts em economia´, devendo incluir também grupos até então marginalizados pelo modelo económico vigente. À luz deste exposto, gostaríamos de iniciar uma conversa convosco. Tencionamos saber sobre as vossas visões para os países Africanos, as economias Africanas, a mobilização de recursos e o povo Africano em geral, para além do COVID-19. Gostaríamos de marcar uma audiência convosco para discutir este assunto mais detalhadamente, potencialmente através de uma reunião via web. Há mais crises vindas em nossa direcção e queremos apoiar ideias criativas e colaborativas para o futuro. Abaixo seguem um conjunto de recomendações avançadas como um primeiro passo no nosso intercâmbio. 

Recomendações:

  1. Reconhecer que todas as constituições Africanas garantem o direito fundamental à equidade e que isso precisa ser a base para a visão e direcção de qualquer política, incluindo políticas sociais e económicas para resposta e recuperação da pandemia do COVID-19. Necessariamente, isso requer uma revisão de políticas de alocação de orçamentos no sentido de garantir direitos aos mais marginalizados pelas políticas actuais, e assim ainda mais negativamente afectados pelos impactos do COVID-19, incluindo as mulheres, mas também as várias intersecções de marginalização estrutural na linha de classe ou estatuto económico, deficiência, estado de VIH, orientação sexual e identidade de género. 
  2. O apoio às redes locais de fornecimento de produção e distribuição de alimentos deve ser reforçado, principalmente através de recursos monetários, e não só,  providenciados directamente aos pequenos produtores agrícolas em África, que são os guardiões da biodiversidade, sementes indígenas e da terra. Os Ministérios de Agricultura africanos devem colaborar com os movimentos económicos, climáticos e de soberania alimentar em todo o continente para desafiar a agricultura industrializada e apoiar a práticas de agroecologia, incluindo o direito dos agricultores de armazenar e partilhar sementes em espaços comunais, nacionais, regionais e pan-Africanos. Além disso, o legado colonial de extracção de recursos de África através da exportação e  práticas de negociações nocivas precisa ser rompido. Em termos de alimentação, a insistência na monocultura para o mercado de exportação tem reduzido a diversidade de colheita necessária para uma dieta balanceada e nutritiva nas nossas comunidades e desalojado os povos das suas terras, dando milhões de hectares de terra às empresas privadas, incentivando a implementação de iniciativas com pendor corporativo. Isto acontece apesar do facto de serem os pequenos produtores e agricultores de subsistência, e não as corporações, que alimenta a maioria das pessoas em África. 
  3. A propagação do COVID-19 demonstrou a clara ligação entre a saúde e o meio ambiente. Desta forma, manter a integridade do ecossistema africano, enquanto as comunidades são capacitadas para obter meios de subsistência e gerar benefício dos recursos naturais, deve ser parte de qualquer plano de recuperação económica. Ao invés de focarem-se em intervenções de mercado para conservação ambiental por si só, os governos Africanos precisam priorizar a conservação e  o uso sustentável da biodiversidade para o benefício das comunidades que são guardiãs dos recursos e cujos meios de subsistência são diretacmente dependentes dos recursos naturais.
  4. O papel do Estado tem sido consistentemente esvaziado desde a introdução dos Programas de Ajustamento Estrutural e requer uma renovação, através da participação directa do povo africano traçando o caminho para a garantia de direitos, da distribuição socioeconómica e do igual acesso às infraestruturas sociais. Isso necessita de uma desmercantilização e instituição do acesso universal básico à terra, água, alimentação, saúde, educação, abrigo, saneamento, luz e tecnologias de informação. As Parcerias Público-Privadas têm gravemente limitado o papel dos estados e criado hierarquias de acesso antidemocráticas, resultantes da cobrança de taxas de utilização. O acesso à energia, educação, transporte e cuidados de saúde, por exemplo, facilitam a reprodução social e a sobrevivência das classes desempregadas, trabalhadoras e das famílias que dependem da agricultura de subsistência na ausência de apoio adequado do estado.
  5. De acordo com a OIT, “o trabalho informal é a principal fonte de emprego em África, estimado em cerca de 85.8 por cento de todo o emprego” e “praticamente todo o emprego no sector agrícola, estimado em 97.9 por cento”. A economia informal, isto é, a economia popular e transversal, é o motor dos mercados Africanos. Os estados devem usar esta oportunidade para reorientar os modelos e as protecções económicas, reconhecendo que as economias Africanas estão baseadas nesse trabalho invisibilisado. Esta economia é tratada como ‘adjacente’ ou ‘informal’ principalmente por ser amplamente dirigida pelo trabalho das mulheres. Medidas como o PIB e o PNB são ineficazes para dar conta da actividade económica existente neste sector. De tal forma, à todos os trabalhadores informais deve ser garantido um salário digno, medidas de protecção em seus locais de trabalho, e licença médica paga.
  6. Nenhuma reviravolta irá decorrer no destino socioeconómico Africano sem o reconhecimento do valor económico, social, político e cultural da economia do cuidado – onde a provisão de cuidados e serviços para as famílias e para as economias é, sobretudo, devido ao trabalho doméstico, gratuito e invisibilisado das mulheres, mas também dos trabalhos mal pagos, precários e sem protecção nos sectores informal, de entes públicos e migrantes. Ao abandonarem consistentemente as suas obrigações de direitos humanos reconhecidos internacionalmente para a promoção dos direitos sociais e igualdade, os governos africanos vêm aumentando a carga das mulheres através do aumento de cuidados reprodutivos e trabalhos domésticos. 
  7. É vital reforçar a priorização do investimento público em protecções sociais incluindo serviços sociais acessíveis e de qualidade para toda a população. Este é um momento decisivo, e uma oportunidade para os Estados Africanos não só reconstruirem a sua capacidade administrativa e material para providenciar serviços sociais, mas também para recuperar o seu lugar aos olhos do povo Africano. 
  8. É necessário considerar respostas que procurem não só atender aos impactos directos do COVID-19, mas também procuram reforçar de maneira mais abrangente e inclusiva os sistemas de saúde e de protecção social, reconhecendo que isto é, fundamentalmente, um processo político que diz respeito à criação e sustento de sistemas que beneficiem a maioria. Diversas epidemias e pandemias já afectaram o continente Africano, e o COVID-19 não será a última. De facto, a falta de infraestruturas de saúde e pesquisa para outras epidemias como o VIH/SIDA e a malária tem sido normalizada de forma preocupante. Além disso, é necessário constar que a terceirização deste trabalho para capitalistas filantropos é uma estratégia destinada ao fracasso, para além de imortalizar a visão de que os Estado Africanos são incapazes de prover para os povos Africanos. Quanto muito, isso privilegia aos capitalistas filantropos, atribuindo à poucas vozes ocidentais mais poder e influência do que nações Africanas inteiras. Essa vozes não têm interesse algum em soluções sistemáticas, pois isso desafiaria as estruturas de poder em que estão implicadas. 
  9. As protecções de patentes e outras leis de propriedade intelectual consolidaram mais ainda uma abordagem comercial aos cuidados de saúde em África. Em memória recente está a luta do povo Africano pelo acesso aos anti-retrovirais, uma luta em que se perderam milhões de vidas porque o lucro das empresas farmacêuticas foi priorizado em detrimento das vidas do povo Africano. Não podemos permitir que os mesmos erros se repitam sem fim. O conhecimento não pode ser uma mercadoria, e por isso todas as vacinas, medicamentos e conhecimento relacionados ao COVID-19, e não só, devem ser universalmente acessíveis à todos.
  10. Para além das moratórias no serviço de dívidas em resposta ao COVID-19, a anulação de dívidas deveria ser uma prioridade. As condicionalidades da assistência financeira ao continente também devem ser rejeitadas pelos governos Africanos. De um modo geral, estas condicionalidades  reduzem a capacidade dos estados de implementar políticas socialmente adequadas tais como as recomendadas posteriormente, e em particular elas incitam a privatização de serviços-chave (incluindo mais desregulamentações do sector privado); devendo ser inteiramente criticadas e combatidas por uma frente Africana unida.
  11. O aumento do Investimento Direto Estrangeiro deve ser solicitado sem promessas de isenção fiscal, que de forma efectiva abrem lacunas para as empresas multi/transacionais cujos accionistas lucram com a exploração dos recursos Africanos sem precisarem contribuir substantivamente para as necessidades do povo Africano. Apenas almejando e impondo uma política fiscal progressiva, focada nas corporações transnacionais em particular, é que se vai suprir o défice fiscal Africano. Essa angariação de receitas para os estados Africano é indispensável para uma recuperação económica sustentável pós-COVID-19, bem como para reduzir a dependência das economias africanas da divida externa.
  12. Um dos impulsos da economia neoliberal é o tratamento do povo Africano como um elemento residual nos processos e negociações económicos. As necessidades das comunidades Africanas e o uso sustentável de recursos naturais (ainda mais importante nesta crise climática de rápido agravamento) continuam a ser tidos como objectivos secundários comparado aos planos de desenvolvimento que priorizam ganhos de curto prazo a custo da terra e do bem-estar do povo Africano no curto, médio e longo prazo. Uma vez que as comunidades Africanas são as guardiãs da terra e do meio ambiente, estas mesmas comunidades devem poder exercitar o seu direito ao veto de qualquer proposta de finança ou projecto de desenvolvimento. De facto, todos os Africanos deveriam estar informados e providenciar um consentimento prévio sobre qualquer consulta ou processo mais abrangente de elaboração de políticas públicas.